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Milorde

2. Uma mulher separada

Milorde, 28.03.23

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A minha mãe era uma mulher separada. Isto nos dias de hoje é visto como algo normal, mas nos anos 80 uma mulher separada era alguém mal vista pela sociedade, nada digna de pertencer à comunidade. As outras mulheres da aldeia mal lhe falavam ou, se porventura o fizessem, aconselhavam-na a voltar para o marido de que maneira fosse, porque uma mulher sozinha e com um filho pequeno nos braços era uma vergonha!

A minha mãe chegou muitas vezes a confessar que sofria de violência doméstica e que não queria voltar a sujeitar-se a isso.

- E tu pensas que o meu marido também não me bate? - disse-lhe certa vez a Rosa - e que vou eu fazer? Tenho que aguentar, ele é meu marido!

Entretanto a minha mãe arranjou emprego numa fábrica de calçado e deixou-me a cargo de um infantário, porque a minha avó tratava das terras e do gado e não tinha disponibilidade para tal. Obviamente que não tenho memória alguma desse tempo, todas estas palavras que vos escrevo ouvi-as da minha mãe vezes sem conta à noite perto da lareira, quando muitas vezes ela bebia para afogar as mágoas de uma vida com tantas promessas desfeitas.

Lembro-me muito vagamente que quando a minha mãe trabalhava ao sábado eu ficava com a minha avó e acompanhava-a até às vacarias onde olhava espantado para as vacas que comiam a palha que ela lhes deitava num abrir e fechar de olhos. Também me sentava perto do tanque onde ela lavava a roupa e ouvia as suas canções maravilhado:

 

Meu benzinho eu vou-me embora

Dar carinhos a quem me adora

Meu benzinho eu já cá estou

Dar carinhos a quem me amou

 

Tu danças daí, daqui canto eu

Tu és o meu par e o teu par sou eu

 

Continua...

Conto de Natal - em memória da minha avó

Milorde, 22.12.22

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24 de dezembro de 2015

Cheguei a casa da minha avó por volta das 5 da tarde. Na cozinha já se preparavam as batatas e as pencas, o bacalhau já estava na grande panela que é usada ano após ano para o cozer. A minha avó estava sentada no sofá a olhar para o vazio, completamente alheia ao que se passava ao seu redor. De vez em quando dizia alguma coisa sem sentido, palavras soltas que ninguém compreendia, por vezes dizia "saiam todos daqui".

O natal sempre foi passado em casa da minha avó com os meus tios, primos, uma família enorme reunida numa pequena cozinha aquecida por uma lareira que quando o vento soprava forte largava fumo e tínhamos que abrir a janela para não intoxicarmos. Lembro-me que cheguei a ir com ela algumas vezes comprar azeite caseiro a um lagar onde duas senhoras já de idade o faziam. Eu nunca gostei daquele azeite, achava-o um pouco ácido, e então ela comprava sempre para mim no mercado o melhor azeite que existia, e claro fazia sempre aquela aletria que só ela sabia fazer e que eu nunca mais provei igual.

Até ao dia em que ela em vez de colocar açúcar na aletria, colocou sal. Em vez de chamar a minha irmã pelo nome, chamou-a por outro. Não se lembrava das pessoas, perdia-se no caminho, e começou a apanhar erva para o gado que ela já não tinha.

Alzheimer - o neurologista não teve qualquer dúvida no diagnóstico - puro e duro! - acrescentou. Não havia nada mais a fazer. A partir daí tudo foi diferente.

Voltando ao dia 24 de dezembro de 2015, a ceia de natal passou-se bem entre comida, bebida, doces e gargalhadas. A minha avó desta vez balançava-se para trás e para a frente e soltava alguns lamentos devido ao barulho que as crianças faziam ao bincar. Fui sentar-me ao pé dela no sofá e agarrei-lhe na mão que ela logo apertou e acalmou-se. Perguntei-lhe como tantas outras vezes se sabia quem eu era, respondia-me sempre com palavras soltas e dizia "não quero, não quero" como se eu lhe estivesse a oferecer alguma coisa, contudo desta vez ela levantou a cabeça e olhou para mim e após uns segundos de reflexão disse: é o Milorde!

Os meus olhos encheram-se de lágrimas e fui preenchido por um calor no coração que jamais poderia explicar por palavras. Um momento fugaz que durou pouco pois logo depois baixou a cabeça e começou a lamentar-se. Disse-lhe "eu estou aqui, o Milorde está aqui" e vi que também ela começou a chorar enquanto apertava a minha mão.

Acredito que a magia do natal que tanto falam estava connosco naquele momento. Não tenho outra explicação para o descrever. Guardei-o só para mim porque se o partilhasse de certeza que uma outra pessoa iria insistir com ela para que reconhecesse mais alguém.

Este natal será o segundo sem a presença física da minha avó. Todos os dias me lembro dela e peço que descanse em paz e que seja iluminada sempre pela luz perpétua.

Para mim, o natal será sempre sinónimo de avó. Não tem como não ser.

 

Um conto de natal em memória da minha avó para o desafio que me foi lançado pela nossa querida Isabel.

Princesa linda sem fim, que me criou

Milorde, 09.03.22

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Sabem aquelas músicas que ouvíamos quando éramos crianças e quando as voltamos a ouvir uma catrefada de memórias invade a nossa mente?

Isso aconteceu-me ontem quando ouvi algumas músicas do Tony Carreira, um cantor que a minha avó gostava muito. E há uma música que ele dedica à mãe que diz "princesa linda sem fim, que me criou"!

Foi a minha avó que me criou. A minha mãe foi mãe muito jovem e com um casamento conturbado, uma instabilidade financeira incapaz de me dar aquilo de que precisava. Bastava eu entrar por aquela porta e tinha tudo! Talvez nem tudo... mas o amor que eu sentia ali naquela casa enchia-me a alma. Agora sempre que entro lá só encontro o vazio.

A minha avó passava tardes inteiras de domingo a ouvir os concertos do Tony Carreira que passavam na televisão por vezes, antes destes programas que agora passam cheios de números 761 que oferecem muito dinheiro. Cheguei mesmo a comprar-lhe um DVD com um concerto ao vivo desse cantor para ela ver quando quisesse.

A minha avó faleceu há 4 meses. A princesa linda sem fim que me criou descansa em paz de uma vida dura. Por cá ficam as saudades e as memórias.

Agora digam-me vocês: qual é a música (ou as músicas) que vos trazem memórias?

A limusina

Milorde, 18.02.22

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Deveria ter os meus 10 anos quando o meu tio comprou uma Peugeot 505. A carrinha era comprida e sempre que ia dar um passeio com ele imaginava-me dentro de uma limusina tal como a princesa Diana. Fazia questão de me sentar nos bancos de trás e acenava às pessoas que encontrava na rua enquanto o vento revolvia os meus cabelos, ao som de músicas portuguesas das cassetes que ele tinha.

O mais engraçado é que a carrinha tinha alguma proteção contra as crianças e as portas de trás não abriam por dentro, era o meu tio que tinha de as abrir, tal e qual como se ele fosse um chofer e eu uma pessoa de alta sociedade.

Sempre que jantávamos com ele eu vestia a minha melhor roupa e no restaurante pedia um prego no prato porque sabia que trazia sempre uma fatia de queijo e outra de fiambre, uma regalia que raramente tinha em casa.

Já não sei o que aconteceu a essa carrinha, provavelmente deve estar numa sucata ou simplesmente destruída numa pilha de metal compactado, mas as memórias que tenho dela ainda estão dentro da minha cabeça tão vivas que certo dia cruzei-me com um modelo parecido e lembrei-me de tudo isto.