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Milorde

O Milorde chocado

Milorde, 28.12.22

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Certo dia estava a pensar em como teria sido o meu nascimento quando, ao fazer as contas, me apercebi que a minha mãe casou-se já grávida sem o saber. Confrontei-a logo com a minha descoberta. Se ela casou em Agosto de 1985 e eu nasci em Maio de 1986 é provável que quando a minha mãe atravessou a igreja vestida de branco, com véu e grinalda, jurando amor eterno ao meu pai na saúde e na doença até que a morte os separe, eu já estava a ser gerado no seu ventre. A minha mãe limitou-se a concordar comigo, realmente sim é provável, mas se tal aconteceu ela não sabia.

Este assunto veio à baila no dia de natal quando estava reunido com toda a minha família na casa da minha avó. Disse que tinha chegado a essa conclusão e a minha mãe não se fez de rogada e logo respondeu que se aquele banco de carpinteiro que o meu avô tinha na carpintaria falasse tinha muitas histórias para contar. A minha tia, que na altura também namorava com aquele que viria a ser seu futuro marido, confirmou dizendo que quando olhou para o fundo da carpintaria viu a minha mãe deitada no tal banco e que logo depois só se ouvia o banco a ranger. Toda a gente se riu. Eu, por outro lado, também descobri que fui concebido num banco de carpinteiro, às escuras, escondidos dos meus avós, com a minha tia a ouvir... espetáculo!

Já que estávamos numa de conversar sobre a intimidade, uma outra tia também disse que o seu filho foi feito num palheiro, em cima da palha seca. "Antigamente é que era, até dava mais gosto!".

Digam-me se eu posso ser uma pessoa normal no meio desta família.

O jantar

Milorde, 02.11.19

Quando finalmente entramos na mansão, o céu já escurecia. Mostrei à Condessa os seus aposentos para que pudesse descansar um pouco da viagem antes do jantar. Mandei a Maria preparar mais um quarto de hóspedes para a Pauline, a nossa convidada surpresa, que pelo que consegui apurar, é uma neta da Madame da qual não tinha conhecimento.

A mesa já estava posta com a melhor loiça, talheres e copos que consegui reunir. Tudo reluzia à luz das velas que lhe conferiam um aspeto de nobreza. Vinha um cheiro fenomenal da cozinha! Contratei um cozinheiro especializado na cozinha francesa para preparar o nosso primeiro jantar, a Maria não conseguiria dar conta de tudo sozinha, coitada já estava a fazer um esforço enorme! Tudo estava a correr bem, não havia nada que me preocupasse... até ao momento em que se ouviu um grito.

Corri desenfreadamente até ao quarto da Condessa e encontrei-a em cima de uma cadeira ainda a gritar e escondendo o rosto com as mãos. Toda a gente veio também a correr ver o que se passava.

- O que se passa, Madame? Porque gritais dessa forma?

Ela tirou uma mão da cara e apontou para um canto da parede.

- Está ali uma... uma... aranha!!

Outro grito fez-se ouvir, mas desta vez era Pauline que gritava e foi logo a correr colocar-se em cima da cama, imitando a avó.

- Tenham calma, senhoras. Eu já vou buscar uma vassoura - prontificou-se a Maria. Momentos depois estava ela a bater com a vassoura no chão para matar a tal aranha, e de cada vez que ela batia, as duas gritavam como se estivessem possuídas.

Pedi imensas desculpas às duas, assegurando-lhes que tudo estava bem limpo e desinfetado, desconhecendo totalmente de onde aquela maldita aranha surgiu. Os ânimos acalmaram um pouco depois e dirigimos-nos todos para a sala de jantar.

A Condessa Bernadette pediu como aperitivo, e também para se acalmar, um cálice de vinho do porto. Bebeu-o de um só trago o que me deixou estupefacto. Aquela senhora está bem mais habituada à bebida que eu.

- Deseja tomar outro Madame? - perguntei-lhe mais por formalidade, pensando mesmo que ela iria recusar.

- Oui, s'il vous plait - respondeu-me prontamente estendendo-me o cálice.

O jantar foi servido as 20 horas em ponto. Travessas fumegantes cheias de peru assado foram colocadas em cima da mesa, acompanhas por batatas alouradas com tomilho e terrinas de salada. Tudo estava delicioso! A conversa estava animada, a Condessa ria despudoradamente das minhas piadas secas, Pauline fazia festas ao Misha que encontrou um novo colo, enquanto o Sebastião debatia-se em comer uma coxa de peru com os talheres. Acabou por desisitir e pegou na coxa com a mão, o que lhe valeu um olhar não muito simpático da mãe.

Chegou a hora da sobremesa. A Condessa dizia estar já empanturrada e pediu apenas uma salada de fruta. Pauline pediu uma mousse au chocolat e o Sabastião imitou-a. Eu não quis comer sobremesa. Porém, sem que nada o fizesse prever, a Condessa engasgou-se com um pedaço de fruta. Começou a tossir ligeiramente, depois mais violentamente até que me vi aflito pois ela não conseguia respirar e já estava vermelha de tanto esforço.

- Batem-lhe nas costas - gritou a Maria. Mas não fui a tempo. Quando dei por ela, já ela estava atrás da Madame e deu-lhe um sopapo tão grande que a pobre mulher cuspiu a prótese dentária para o copo do vinho.

O Sebastião desatou a rir às gargalhadas. A Maria desculpou-se e eu nem sabia o que dizer. A Condessa retirou a prótese do copo, voltou a coloca-la na boca, disse estar indisposta e foi para o quarto descansar.

E assim acabou o nosso jantar.

A Carolina

Milorde, 29.10.19

Meu querido povo da blogosfera.

Não tenho escrito muito pois como sabeis ando bastante atarefado em preparativos. Já me empanturrei de rissóis, croquetes, coxinhas, pataniscas, panados, moelas, camarões, etc. E ainda só vou nos aperitivos! Tenho que provar tudo o que a Maria faz para dar o meu aval. A minha despensa nunca esteve tão cheia de comida, toda a gente daqui da aldeia quer contribuir com alguma coisa para a receção da Condessa, até os tomates biológicos da D. Aurora vieram cá parar. Pobre povo, não se passa nada nesta aldeia e qualquer acontecimento deixa-os num estado eufórico! Claro que não me importo com isso, nem um pouco, mas o meu estômago já começa a reclamar e ontem estive com uma diarreia que quase me limpou as tripas!

O Misha está a ficar tão gordo que mal se arrasta. A Maria quase que cozinha de manhã à noite para as coisas também não se estragarem, e quando as nossas barrigas estão mais inchadas que os balões do S. João, damos tudo ao pobre gato que nunca diz que não.

Entretanto já conheci a Carolina, a namorada do Sebastião. Trouxe-a cá a casa numa tarde chuvosa para nos apresentar. Uma menina baixa, cheiinha e muito tímida. Estava com o cabelo oleoso por causa da chuva e tinha uma franja que me fazia lembrar a cadela da Sr.ª Albertina de cada vez que ela lhe cortava o pelo. Quando lhe disse que aquele corte de cabelo não lhe favorecia, o Sebastião ficou tão furioso que quase me deu um pontapé nas virilhas se eu não fugisse a tempo. Ela riu-se e olhou o namorado com uma expressão de orgulho por ele a ter defendido. Ora essa, agora a formiga já tem catarro, querem ver?!

- Mãe, a Carolina pode ir ver o meu quarto? - perguntou.

Arregalei os olhos, surpreendido com a pergunta.

- Claro... que não! - disse a Maria. Suspirei de alívio. Conhecendo o Sebastião como já o conheço, eu sabia qual era a sua ideia de "mostrar o quarto". De certeza que ele ia querer mostrar-lhe aqueles vídeos que ele vê vezes sem conta.

- Oh mãe, que seca!

- Está calado! Vocês os dois ainda são muito novos para andar a brincar aos adultos - disse a Maria, e virando para a menina: - Carolina querida, não sei se a tua mãe já te explicou alguma coisa sobre a vida sexual mas, se ainda não, eu posso perfeitamente fazê-lo. Não é correto uma menina entrar assim num quarto de um menino, sabemos bem que a carne é fraca, mas tu tens de resistir porque é muito bonito quando uma mulher chega ao casamento virgem, vestida de branco, com um ramo de flores de laranjeira.

Eu não acredito que aquilo estava a acontecer ali na minha sala. A miúda ficou tão vermelha que ficou a olhar para o chão sem nada dizer.

- Eu casei virgem! - continuou ela - nunca antes vi o meu homem nu.

- Oh mãe, por favor, para com isso!

- Cala-te Sebastião Manuel. Não é verdade o que eu digo, Milord? Viu a sua mulher nua antes do casamento? É verdade... o senhor alguma vez foi casado, Milord? Engraçado, nunca tinha pensado nisso.

Engasguei-me com um pedaço de cebola de uma patanisca. Comecei a tossir até as lágrimas me brotarem dos olhos. A Maria foi a correr buscar-me um copo de água e, depois de o beber e me acalmar, dei a conversa por terminada e mandei-a para a cozinha preparar o jantar.

A Carolina ficou mais um pouco sentada no sofá a fazer festas ao Misha com o Sebastião ao lado. Diria que ele está mesmo apaixonado pela maneira como a olha. Quando começou a escurecer, ela disse que tinha que ir embora. Despediu-se de mim dizendo-me que foi um gosto conhecer-me e que tinha uma linda mansão. A rapariga é educada. Dirigiu-se para a cozinha para se despedir também da Maria.

Ai! A chegada da Condessa está para breve. Nem vos conto o meu estado de ansiedade.

 

O Presidente

Milorde, 26.10.19

Hoje recebi a visita do Presidente da Junta, Américo Tomás. Nunca antes o Sr. Presidente pôs os pés na minha humilde mansão mas hoje, sem que nada o previsse, fez soar a sineta que tenho junto ao portão. A Maria veio a correr, atrapalhando a minha leitura, e sussurrou-me que quem tinha tocado a sineta era nada mais nada menos que o nosso Presidente acompanhado da sua esposa. Ordenei-a que os fosse receber e os convidasse para entrar, oferecendo-lhes uma chávena de chá, enquanto eu iria trocar de roupa.

Sebastião estava a dormir e eu fechei a porta do seu quarto para que ninguém ouvisse os seus roncos. Quando desci, deparei-me com a Maria sentada no sofá em frente deles pedindo-lhes ajuda pois agora estava separada do marido e ele não a ajudava em nada. Mandei-a para a cozinha e cumprimentei os meus convidados com pompa e circunstância como o momento assim o exigia. O Sr. Presidente apertou-me a mão com força e deu-me uma palmadinha no braço como se fossemos velhos conhecidos. A sua esposa simplesmente acenou-me com a cabeça e fez um leve sorriso. Perguntei-lhes em que os poderia ajudar.

- Milord, desculpe-nos a ousadia de o visitar sem sermos devidamente convidados mas creio que temos um assunto a tratar que será positivo para ambas as partes.

A sua esposa continuava a acenar com a cabeça e eu tive que resistir ao impulso de lhe perguntar se ela sofria de parkinson.

- Sou todo ouvidos senhor Presidente.

Ele refletiu por momentos antes de voltar a falar, olhando para cima como se as suas palavras pairassem por ali no ar.

- Soubemos que Milord iria receber uma visita muito especial de uma Condessa - acrescentou.

- As notícias correm depressa, senhor. Até aposto quem foi que lhe disse - só poderia ser a Aurora do minimercado.

- Oh não leve a mal. Sabe que vivemos numa aldeia pequena e tudo se sabe...

- Compreendo.

- Bem, adiante. Quando soubemos dessa notícia, eu e a minha Lulu, decidimos que tal acontecimento não poderia passar em branco, se é que me entende. Vamos organizar uma festa de boas vindas para a Condessa! Tudo pago pela presidência claro está, Milord não terá de se preocupar com nada, é só comparecer com a Condessa e a sua... família?... as pessoas que habitam aqui consigo.

De repente, um largo sorriso se apoderou de mim.

- Mas isso é uma excelente ideia! Obrigado pela atenção senhor Presidente.

- Oh de nada! Será um prazer.

Depois de decidirmos alguns aspetos importantes, levantei-me para dar a conversa por terminada. Eles fizeram o mesmo. Voltou a dar-me o mesmo aperto de mão vigoroso e a sua esposa, Lulu, o mesmo aceno de cabeça e aquele sorriso artificial que me estava a dar cabo dos nervos. Saíram da minha mansão sem mais uma palavra mas, já quase a chegar ao portão, o senhor Presidente virou-se para trás e disse:

- Ah! E não se esqueça de mim nas próximas eleições!

Claro.