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Milorde

Conto de Natal - em memória da minha avó

Milorde, 22.12.22

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24 de dezembro de 2015

Cheguei a casa da minha avó por volta das 5 da tarde. Na cozinha já se preparavam as batatas e as pencas, o bacalhau já estava na grande panela que é usada ano após ano para o cozer. A minha avó estava sentada no sofá a olhar para o vazio, completamente alheia ao que se passava ao seu redor. De vez em quando dizia alguma coisa sem sentido, palavras soltas que ninguém compreendia, por vezes dizia "saiam todos daqui".

O natal sempre foi passado em casa da minha avó com os meus tios, primos, uma família enorme reunida numa pequena cozinha aquecida por uma lareira que quando o vento soprava forte largava fumo e tínhamos que abrir a janela para não intoxicarmos. Lembro-me que cheguei a ir com ela algumas vezes comprar azeite caseiro a um lagar onde duas senhoras já de idade o faziam. Eu nunca gostei daquele azeite, achava-o um pouco ácido, e então ela comprava sempre para mim no mercado o melhor azeite que existia, e claro fazia sempre aquela aletria que só ela sabia fazer e que eu nunca mais provei igual.

Até ao dia em que ela em vez de colocar açúcar na aletria, colocou sal. Em vez de chamar a minha irmã pelo nome, chamou-a por outro. Não se lembrava das pessoas, perdia-se no caminho, e começou a apanhar erva para o gado que ela já não tinha.

Alzheimer - o neurologista não teve qualquer dúvida no diagnóstico - puro e duro! - acrescentou. Não havia nada mais a fazer. A partir daí tudo foi diferente.

Voltando ao dia 24 de dezembro de 2015, a ceia de natal passou-se bem entre comida, bebida, doces e gargalhadas. A minha avó desta vez balançava-se para trás e para a frente e soltava alguns lamentos devido ao barulho que as crianças faziam ao bincar. Fui sentar-me ao pé dela no sofá e agarrei-lhe na mão que ela logo apertou e acalmou-se. Perguntei-lhe como tantas outras vezes se sabia quem eu era, respondia-me sempre com palavras soltas e dizia "não quero, não quero" como se eu lhe estivesse a oferecer alguma coisa, contudo desta vez ela levantou a cabeça e olhou para mim e após uns segundos de reflexão disse: é o Milorde!

Os meus olhos encheram-se de lágrimas e fui preenchido por um calor no coração que jamais poderia explicar por palavras. Um momento fugaz que durou pouco pois logo depois baixou a cabeça e começou a lamentar-se. Disse-lhe "eu estou aqui, o Milorde está aqui" e vi que também ela começou a chorar enquanto apertava a minha mão.

Acredito que a magia do natal que tanto falam estava connosco naquele momento. Não tenho outra explicação para o descrever. Guardei-o só para mim porque se o partilhasse de certeza que uma outra pessoa iria insistir com ela para que reconhecesse mais alguém.

Este natal será o segundo sem a presença física da minha avó. Todos os dias me lembro dela e peço que descanse em paz e que seja iluminada sempre pela luz perpétua.

Para mim, o natal será sempre sinónimo de avó. Não tem como não ser.

 

Um conto de natal em memória da minha avó para o desafio que me foi lançado pela nossa querida Isabel.

O laboratório X

Milorde, 02.03.22

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Ontem fui à farmácia aviar uma receita habitual. Disse que queria o medicamento do laboratório X, o mesmo de sempre, e tive como resposta:

- Ah, não sei se tenho desse laboratório! - Assim de maneira fria, quase arrogante.

Afinal tinha e tive a sensação que aquilo lhe custou a engolir. Disse-lhe que certa vez, quando o tal medicamento do laboratório X esgotou, experimentei um outro e que não me senti muito bem, tive alguns efeitos secundários diferentes, e que a minha médica sempre me aconselhou a tomar do mesmo laboratório. Expliquei isto tudo de forma educada para que ela me compreendesse, porque os farmacêuticos também têm este papel de compreender a dor dos outros, literalmente.

- Sabe, se cair num hospital, dão-lhe o medicamento de qualquer laboratório! - Outra resposta no mesmo tom.

Com tudo isto, o que eu gostava de saber era se os farmacêuticos ganham mais, ou menos, tal como uma comissão igual aos vendedores de porta em porta, ao venderem medicamentos de certos laboratórios, porque isto já me aconteceu diversas vezes e em farmácias diferentes.

Quando digo que já experimentei de outro laboratório e que o mesmo medicamento provocou-me efeitos diferentes que o habitual, alguns farmacêuticos dizem que: "sim, isso é possível". Outros engelham o nariz e dizem: "isso é impossível!" Nunca chegaremos a um consenso nesse sentido porque cada pessoa reage de forma diferente a cada medicamento, a cada situação, até mesmo a certos alimentos.

Então, sejamos um pouco mais humanos, por favor!