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Milorde

Mentiras e crenças

Milorde, 14.12.19

Estávamos todos à mesa do pequeno almoço quando ouvimos três fortes pancadas na porta. "Mas quem será a esta hora da manhã?" pensei. A Maria saiu da cozinha alvoraçada e, após ter limpo as mãos ao avental, abriu a porta. A D. Aurora entrou de rompante pela minha sala adentro, vestida com uma das suas saias travadas até ao joelho e uma blusa lisa, e procurou-me com o seu olhar. Levantei-me de um salto e dirigi-me a ela, prometendo-lhe que passaria na sua loja mais tarde para acertarmos contas, antes que ela fizesse um escândalo à frente de todos.

- Esqueça as dívidas, Milord! De nada nos serve o dinheiro - disse-me enquanto me agarrava as mãos num estado de desespero. Os seus olhos estavam apavorados.

Pedi-lhe para se sentar e disse à Maria que lhe trouxesse um copo de água, mas da torneira e sem açúcar, porque Milord tem que economizar. Perguntei à D. Aurora o que se estava a passar.

- Eu li na Internet que o mundo vai acabar na noite da passagem para o novo ano! E desta vez vai ser em fogo!

Ouvi qualquer coisa a partir-se e, quando me virei, vi que as três mulheres estavam horrorizadas com o que acabaram de ouvir, até o Sebastião fitou-nos de boca aberta. Misha continuava a lamber a sua taça em busca de restos de comida e dei graças a Deus por pelo menos aquele pobre animal não perceber nada do que aquela mulher tresloucada estava para ali a dizer.

- Vamos lá ter calma minha gente - disse pacientemente, e virando-me para a D. Aurora: - isso é uma estupidez, mulher! Não devemos acreditar em tudo o que se diz na Internet.

- Isso é verdade - interveio o Sebastião - uma vez li na Internet que fazia mal comer comida para gato e olhe eu ainda estou aqui vivinho da silva.

Todos o olhamos estupefactos. Vi que ele se arrependeu do que tinha acabado de dizer mas, em vez de sentir envergonhado, encolheu os ombros e continuou a comer o seu pão. Bem me pareceu que andava a desaparecer muitas latas de comida do Misha... Decidi ignorar o assunto, por enquanto.

- É como lhe digo D. Aurora, o mundo só acaba para quem morre.

- Não, não, não - a mulher abanava constantemente a cabeça - tenho a certeza que o que li é verdade. O artigo citava passagens da bíblia que eu mesma fui confirmar. Uma desgraça que se vai abater sobre nós!

Apesar de não perceber muito bem o português, Pauline foi a correr sentar-se no colo da avó em busca de conforto. Ela falou-lhe algumas palavras em francês para que não se afligisse, seria provavelmente uma brincadeira de mau gosto. Eu não lhe chamaria brincadeira, mas sim ignorância pura.

Tentei a todo o custo tirar aquelas ideias malucas da cabeça da D. Aurora, mas a mulher estava irredutível. Perguntou-me se tinha alguma bíblia em casa para me mostrar as passagens para comprovar que o que ela estava a dizer tinha algum fundamento. Disse-lhe que lamentava mas não tinha nenhuma.

- Nós vamos realizar uma novena na igreja para que o Senhor tenha piedade de nós, e eu vim cá para vos convidar e dizer que é importante a vossa presença lá. Precisamos de estar todos unidos nesta hora para que Deus tenha compaixão de nós.

Disse-lhe que era uma parvoíce e que me recusava a participar em semelhante coisa. Porém, a Maria respondeu que sim, iríamos todos à novena, que mal não faria. Sorte a minha!

A D. Aurora ficou mais satisfeita com a resposta e, com mais algumas palavras religiosas, despediu-se de nós e ao sair fez o sinal da cruz. Permaneceu um silêncio total nesta mansão durante o dia de hoje.

É impressão minha ou esta gente anda toda maluca?!

 

Desabafos

Milorde, 13.12.19

Depois que a Condessa chegou nunca mais tive oportunidade de me sentar na minha poltrona de sala a apreciar um bom livro enquanto a chuva tamborilava na minha janela. Agora, para mal dos meus pecados, todos os dias a Condessa se senta lá com o seu romance erótico e consegue passar lá horas, interrompendo a leitura ocasionalmente apenas para fazer algum comentário depreciativo. Ora tem frio, ora tem calor; dói-lhe os joelhos de estar tanto tempo sentada ou então dói-lhe as costas; a graduação dos óculos já não é suficiente; sente-se aborrecida com o tempo; etc, etc e etc.

Eu a Maria dobramos-nos em trabalhos para a agradar mas tem sido difícil. Creio que o seu problema de saúde não se estenda somente a uma pneumonia mas também a um grave problema de saúde mental. Sei que não é bonito dizer isto mas também sei que posso contar com a vossa confiança e pelos comentários que tenho recebido, sei que estão do meu lado da barcaça contra esta intrusa que se veio instalar na minha mansão, aproveitando-se da minha boa vontade.

Quanto a Pauline, a sua neta, mal damos por ela, coitada! Sempre muito reservada, talvez por falar mal a nossa língua, passa os seus dias a bordar juntamente com a Maria e a ajuda-la na cozinha no que pode, para não se sentir tão entediada confessou-me ela certo dia. Uma vez, ao jantar, disse-nos que tinha sido ela a preparar a sopa sozinha sem ajuda. A sopa estava muito salgada mas nenhum de nós ousou dizer o que quer que fosse para não a desmotivar. Sebastião até disse que nunca tinha comido uma sopa tão boa, fazendo-a corar como um tomate. Bebi tanta água depois que passei quase a noite toda na casa de banho, temi encher a sanita toda.

Esta noite tive um pesadelo horrível. Sonhei que quando cheguei à minha mansão depois de uma caminhada, a Condessa tinha-se evaporado e com ela todos os meus pertences. A mansão estava vazia! O pior de tudo é que ela também tinha levado consigo a Maria e o Sebastião.

Comunicado

Milorde, 10.12.19

Meus queridos,

Antes demais peço desculpa pela minha ausência. Milord esteve sem internet cá em casa por falta de pagamento da fatura. Todas as minhas economias foram para pagar o IMI desta mansão, um valor que quase me derrubou da cadeira onde estava sentado nas finanças. Quase que teria lá uma síncope sem que ninguém me pudesse socorrer, mas não dei parte fraca e comportei-me como um cavalheiro que dá o peito às balas, efetuando o pagamento em dinheiro vivo, pois Milord não confia nos bancos para o guardar.

Mal cheguei à mansão a Condessa perguntou se me estava a sentir bem porque segundo as suas palavras estava pálido como uma cera. Disse-lhe que estava um pouco indisposto e nessa noite não jantei apesar dos protestos da Maria.

Tenho muitas mais histórias para partilhar convosco mas hoje fico-me por aqui. Serve o presente texto para vos dizer somente que me encontro vivo e de boa saúde.

Com os melhores cumprimentos.