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Milorde

Dívidas

Milorde, 08.11.19

A Maria anda atulhada de trabalho. Todos os dias ela prepara as refeições, levanta a mesa, lava a loiça, trata da roupa e faz a limpeza da mansão. Certo dia disse-me, em tom de brincadeira mas falando a sério, que quando a Condessa e a sua neta regressassem às suas casas, que precisava de férias. Talvez fosse visitar a sua mãe que vivia numa aldeia a 20 quilómetros de distância daqui, durante duas semanas, o que me deixou alarmado pois se tal acontecesse iria voltar aos meus dias de solidão com o Misha. Tenho de pensar seriamente em oferecer-lhe um salário para a motivar mas não sei como... tenho gasto todas as minhas economias e peças de prata para sustentar os caprichos da Condessa.

Sempre que a Maria vai ao talho comprar alguma carne, o Sr. Constantino diz-lhe que a conta está a aumentar de dia para dia, e pede que eu lhe vá fazer uma visita para "acertarmos contas". Certamente que não me vai oferecer uma chávena de chá enquanto conversarmos.

Enquanto estou a escrever este texto, alguém bate à porta e eu, por instinto, sussurro à Maria que diga, a quem quer que seja, que eu não estou.

- Quero falar com sua senhoria, Milord - ouço a voz da D.ª Aurora da mercearia.

- Oh lamento Aurora, Milord acabou de sair.

- Não me venhas com essa conversa Maria, eu sei bem que ele está em casa. Se ele não me receber eu vou começar aqui aos berros a dizer o quanto ele me deve. Faço um escândalo!

Levantei-me de um salto e corri para a porta.

- Oh D.ª Aurora, que prazer que tenho em recebê-la na minha humilde mansão, faça o favor de entrar - retorqui.

Ela entra e cruza os braços sobre o peito olhando-me com má cara. Ordeno à Maria que prepare  um chá para a nossa amiga.

- Não seja hipócrita, Milord. Eu não quero chá nenhum. Venho aqui receber o que me deve.

Entrega-me um papel com a soma total do meu fiado. Fico horrorizado! No papel está tudo descrito, os produtos e os seus valores, com uma soma total de 100€. Porém, ao reparar pormenorizadamente na lista, vejo coisas que desconheço ter pedido, tais como: lâminas de barbear, pastilhas elásticas, cerveja e uma caixa de preservativos.

- Desculpe minha senhora, mas há aqui coisas na lista que eu não comprei! - reclamei.

- Pois claro que não, Milord. O senhor vive com mais gente em casa, não sei se sabe - respondeu-me a D.ª Aurora.

Não precisei de pensar muito para perceber quem tinha comprado aquelas coisas e colocado na minha conta. O Sebastião vai ouvir das boas quando chegar a casa da escola!

Resignado, peguei na minha carteira e retirei todas as notas que lá continha. Fiquei a olhar para elas, triste. A D.ª Aurora arrancou-mas das mãos, contou-as uma por uma e depois colocou-as por dentro da camisola, no sutiã.

- Muito obrigado, Milord, e até à próxima - disse e saiu.

- Quando eu apanhar aquele marmanjo, vou-lhe puxar aquelas orelhas até ele me confessar para quem ele anda a comprar as cervejas, porque eu não acredito Milord que ele beba qualquer bebida alcoólica. Sei bem que o meu filho não é um santo mas também não é alcoólico.

- Pois, pois - foi tudo o que consegui dizer.

 

Os cogumelos

Milorde, 07.11.19

Esta manhã a Condessa estava mais bem disposta. Disse que dormiu bem, apesar da tosse que todas as noites a importuna, e que hoje queria ir dar um passeio pela aldeia. Bem que precisa, pensei cá para comigo. Não sei se já referi mas a Condessa Bernadette é uma senhora de bom porte, pesa cerca de 90 quilos, e um pouco de exercício físico não só fará bem para a sua saúde como para o seu corpo. Disse-lhe que a acompanhava.

- Pauline, minha querida, queres vir connosco? - perguntou-lhe a Madame.

- Ah... não! Prefiro ficar com a Marie.

Maria tem-lhe ensinado a fazer ponto cruz, algo que pensava estar fora de moda, mas a miúda tem sido bastante aplicada e tem feito trabalhos muito bonitos.

Saímos para o ar fresco da manhã. O sol espreitava timidamente por entre as nuvens após alguns dia chuva, e o chão estava coberto de folhas coloridas que caíam das árvores a todo o instante. Estava bastante agradável a nossa caminhada, porém, depois de alguns minutos, a Condessa disse:

- Ai não aguento, vou sentar-me ali naquelas pedras para repousar um pouco! Já estou cansada.

- Mas... Madame nós só caminhamos apenas uns 100 metros!

- E então? Você pensa que tenho a sua idade, Milord?

Sentou-se e retirou da sua mala um leque florido para o abanar um pouco contra o seu rosto. Sentei-me junto a ela e fiquei a observar as árvores que ficavam cada vez mais nuas. Entretanto, a Condessa guardou o leque na sua mala para depois tirar os seus óculos de leitura e um livro de bolso. Realmente as bolsas das mulheres estão sempre cheias de coisas. Reparei que na capa do livro estava uma mulher vestida com saia curta e uns collants pretos. O título era: Je suis une secrétaire soumise a ses patrons. [Eu sou uma secretária submissa aos meus patrões]. Um romance erótico!

Nem queria acreditar. Fiquei chocado! Nem a minha boca abri e continuei a observar as árvores. Contudo, de repente, ela levanta os olhos do livro e fica a olhar especada para o outro lado da rua.

- Não posso acreditar. C'est des champignons!

Apontou para uns cogumelos que cresciam junto a umas árvores no mato em frente. Disse-lhe que jamais comeria daqueles cogumelos que provavelmente eram venenosos. Ela bateu-me com o livro no braço.

- Não diga disparates, seu estúpido! Aqueles cogumelos são ótimos. Vamos apanha-los para o almoço.

Guardou as suas coisas na mala e levantou-se. Atravessou a rua em passos acelerados, já cheia de uma renovada energia vinda não sei de onde, e subiu o pequeno muro para o mato.

- Tenha atenção, Madame! - dizia eu com receio.

Agachou-se e apanhou-os a todos, ficando com as mão todas sujas de terra, uma imagem que nunca me passou pela cabeça. Sempre pensei que uma Condessa mandava os outros fazer o trabalho por si.

- Oh, ali ao fundo tem mais.

- Deixe-se estar que aqueles eu apanho-os, Madame!

Mas ela nem ligou, continuou a caminhar na direção dos outros cogumelos e eu seguia-a com todo o cuidado pois o chão estava húmido da chuva. Quando estava a chegar junto dos outros cogumelos, a Condessa desequilibrou-se e com um grito caiu desamparada com a cara no chão!

- Oh Deus! Madame está bem?! - perguntei alarmado enquanto a ajudava a levantar-se. Estava com a cara toda suja de lama.

- Deixe, Milord. Eu perdi a vontade de comer cogumelos!

Entramos em casa e mandei logo a Maria preparar um banho quente para a Madame.

Uma manhã atribulada

Milorde, 04.11.19

Amanheceu. Acordei com o Misha a arranhar a porta do meu quarto para me pedir comida. Levantei-me e desci até à cozinha para lhe dar um pouco de leite. Estranhei a casa ainda estar em silêncio mas, como ontem foi dia de festa, é natural que estivessem todos a descansar. Fiz um café para mim e sentei-me na minha poltrona, na sala de estar, a ler um jornal antigo que guardo para fazer as palavras cruzadas. Porém, ouço passos lá em cima e vejo a Maria a descer as escadas esbaforida.

- Passa-se alguma coisa, Maria?

- Ela está a cagar-se toda lá em cima, Milord. Eu não aguento, juro-lhe que não aguento! - respondeu-me.

Corri escadas acima e encontrei a Condessa pálida como a cera de uma vela, ainda de robe, sentada na cama. Perguntei-lhe o que se passava com ela.

- Oh, je suis malade! - respondeu-me.

- Mas o que aconteceu, Madame? Está tão pálida!

- Foi a salada de fruta, Milord! Tinha kiwi et je suis allergique ao kiwi.

- Oh, lamento Madame... eu não sabia!

Bonito. Agora a Condessa está com uma intoxicação alimentar. A Maria chegou ao quarto com uma banana cortada às rodelas, dizendo que era bom para prender o intestino. Depois colocou uma máscara, como aquelas que os médicos usam, para poder ir limpar a casa de banho.

Pauline sentia-se tão perdida no meio daquele caos que tive pena dela e pedi-lhe para me acompanhar na mesa do pequeno-almoço. A Condessa não desceu, preferiu ficar mais um pouco nos seus aposentos. Sebastião juntou-se-nos e dirigiu-lhe um sorriso caloroso. Disse que esteve ontem à noite a aprender um pouco de francês para melhor se comunicar com as nossas visitas. Agradeci-lhe o gesto, contudo, para mostrar o que sabia, virou-se para ela e disse:

- Voulez-vous coucher avec moi, ce soir! [Quer deitar-se comigo esta noite?]

A Pauline ficou chocada e deu-lhe um estalo na cara. Correu escadas acima para ir ter com a avó.

- Que é que eu disse de mal? - perguntou.

Fiz-lhe a tradução e ele jurou-me que não sabia qual era o significado, que aprendeu aquelas palavras com uma canção, achou-as tão bonitas e quis impressionar.

Parece que não está nada fácil a situação.

O jantar

Milorde, 02.11.19

Quando finalmente entramos na mansão, o céu já escurecia. Mostrei à Condessa os seus aposentos para que pudesse descansar um pouco da viagem antes do jantar. Mandei a Maria preparar mais um quarto de hóspedes para a Pauline, a nossa convidada surpresa, que pelo que consegui apurar, é uma neta da Madame da qual não tinha conhecimento.

A mesa já estava posta com a melhor loiça, talheres e copos que consegui reunir. Tudo reluzia à luz das velas que lhe conferiam um aspeto de nobreza. Vinha um cheiro fenomenal da cozinha! Contratei um cozinheiro especializado na cozinha francesa para preparar o nosso primeiro jantar, a Maria não conseguiria dar conta de tudo sozinha, coitada já estava a fazer um esforço enorme! Tudo estava a correr bem, não havia nada que me preocupasse... até ao momento em que se ouviu um grito.

Corri desenfreadamente até ao quarto da Condessa e encontrei-a em cima de uma cadeira ainda a gritar e escondendo o rosto com as mãos. Toda a gente veio também a correr ver o que se passava.

- O que se passa, Madame? Porque gritais dessa forma?

Ela tirou uma mão da cara e apontou para um canto da parede.

- Está ali uma... uma... aranha!!

Outro grito fez-se ouvir, mas desta vez era Pauline que gritava e foi logo a correr colocar-se em cima da cama, imitando a avó.

- Tenham calma, senhoras. Eu já vou buscar uma vassoura - prontificou-se a Maria. Momentos depois estava ela a bater com a vassoura no chão para matar a tal aranha, e de cada vez que ela batia, as duas gritavam como se estivessem possuídas.

Pedi imensas desculpas às duas, assegurando-lhes que tudo estava bem limpo e desinfetado, desconhecendo totalmente de onde aquela maldita aranha surgiu. Os ânimos acalmaram um pouco depois e dirigimos-nos todos para a sala de jantar.

A Condessa Bernadette pediu como aperitivo, e também para se acalmar, um cálice de vinho do porto. Bebeu-o de um só trago o que me deixou estupefacto. Aquela senhora está bem mais habituada à bebida que eu.

- Deseja tomar outro Madame? - perguntei-lhe mais por formalidade, pensando mesmo que ela iria recusar.

- Oui, s'il vous plait - respondeu-me prontamente estendendo-me o cálice.

O jantar foi servido as 20 horas em ponto. Travessas fumegantes cheias de peru assado foram colocadas em cima da mesa, acompanhas por batatas alouradas com tomilho e terrinas de salada. Tudo estava delicioso! A conversa estava animada, a Condessa ria despudoradamente das minhas piadas secas, Pauline fazia festas ao Misha que encontrou um novo colo, enquanto o Sebastião debatia-se em comer uma coxa de peru com os talheres. Acabou por desisitir e pegou na coxa com a mão, o que lhe valeu um olhar não muito simpático da mãe.

Chegou a hora da sobremesa. A Condessa dizia estar já empanturrada e pediu apenas uma salada de fruta. Pauline pediu uma mousse au chocolat e o Sabastião imitou-a. Eu não quis comer sobremesa. Porém, sem que nada o fizesse prever, a Condessa engasgou-se com um pedaço de fruta. Começou a tossir ligeiramente, depois mais violentamente até que me vi aflito pois ela não conseguia respirar e já estava vermelha de tanto esforço.

- Batem-lhe nas costas - gritou a Maria. Mas não fui a tempo. Quando dei por ela, já ela estava atrás da Madame e deu-lhe um sopapo tão grande que a pobre mulher cuspiu a prótese dentária para o copo do vinho.

O Sebastião desatou a rir às gargalhadas. A Maria desculpou-se e eu nem sabia o que dizer. A Condessa retirou a prótese do copo, voltou a coloca-la na boca, disse estar indisposta e foi para o quarto descansar.

E assim acabou o nosso jantar.